Dói mesmo, eu me apaixono mesmo, eu sou intensa mesmo, eu me ferro mesmo, às vezes eu ferro as pessoas mesmo.
Viver é um absurdo e não dá pra passar por isso tão ileso.
Tati Bernardis.


  Simplesmente porque é assim que a gente faz com a nossa própria existência: não entendemos nada, mas continuamos insistindo.

O dia estava ensolarado, não havia nenhuma nuvem no céu, os pássaros cantavam alegres em galhos altos das árvores e fios dos postes de luz, ora voavam alegres, brincando felizes entre si, como se fossem crianças do céu, brincando de pega-pega, voando para cá e para lá, se enroscando um no outro e depois voando para longe, perseguido pelo outro que estava com a bola da vez, um dia lindo e perfeito e que tinha tudo para ser ainda mais perfeito, aquele era o grande dia, o dia que eu ansiara como uma louca na última semana, o grande dia chegara, e nada ia estragar o meu dia.
Ah, como eu estava enganada.


Eu estava atrasado, eu sabia disso não apenas por olhar as horas no celular, mas porque a Joana, minha assistente pessoal, me mandava áudios e mensagens no Whatsupp a cada cinco segundos, enlouquecida, dizendo o que eu já sabia, que eu estava atrasado.
Deixei o celular sobre o balcão da cozinha e voltei ao quarto para pegar um boné e amassar meu cabelo despenteado, aquela não era uma entrevista de televisão, então eu não precisava estar nos trinques com gel nos cabelos e uma roupa bacana, era só um programa de rádio na Paulista, dar entrevista, um showzinho ao vivo para os ouvintes e algumas fãs, e depois atender as fãs vencedoras de uma promoção, almoçaríamos num restaurante e a tarde teria a entrevista que a Joana insistia que eu tinha que participar para contratar a estagiária ou auxiliar do próprio cargo dela, ela que estava grávida e apesar de estar apenas de quatro meses, dizia que precisaria de tempo para treinar bem o suficiente a pessoa que lhe substituiria por algum tempo, eu não entendia porque eu tinha que participar daquilo.
Arrumei o boné na cabeça, peguei o celular que apitava enlouquecidamente e olhei a última mensagem, antes de sorrir e seguir em direção a porta do meu apartamento. Eu estava um pouco atrasado e teria que correr para chegar a tempo, afinal de contas, não podia deixar minhas fãs esperando.



Tudo começou com indícios de que eu estava imensamente errada em pensar que tudo seria perfeito logo quando eu acordei; acordei, me espreguicei, toda feliz, puxei o celular do travesseiro vazio ao meu lado e quando olhei as horas, dei um pulo na cama: Eu estava atrasada.
Mas que droga, como eu tinha dormido tanto? E por que o bendito celular não despertara na hora que eu havia programado? Levantei ás pressas e corri para o banheiro, tirando o pijama e seguindo direto para o chuveiro, eu tinha três horas para tomar um banho caprichado, me arrumar, correr até a papelaria da Ana Maria, pegar meu book de apresentação, depois seguir até a rádio para a entrevista marcada para as duas da tarde, tudo isso sem deixar com que a maquiagem derretesse e estragasse toda minha cara já linda. Eu estava completamente ferrada.
Tomei o banho mais rápido da minha vida e enquanto me arrumava, pensava em tudo, aquela era a minha grande chance, a chance de ouro, não podia perder aquilo por nada. Eu havia concluído a faculdade de relações públicas e comunicação social no início do ano e fora indicada por uma amiga da faculdade à vaga de auxiliar de relações públicas de uma grande radio de São Paulo, onde ela trabalhava como jornalista, e eu estava super empolgada desde que eles me ligaram marcando a data e horário da entrevista.
Eu tinha dezenove anos quando me mudara para São Paulo para cursar a faculdade, quatro anos atrás, e apesar do medo dos meus pais de me deixarem morando sozinha numa cidade tão grande, a cada dia que se passava eu amava mais e mais aquela cidade, era um caos completo, mas aquela agitação me conquistava e as oportunidades que aquela cidade proporcionava compensava qualquer caos, se você não gostasse de caos como eu gostava, é claro. Agora aos vinte e três anos, ou quase vinte e três, na verdade, eu morava sozinha num apartamento pequeno na região oeste da cidade, próximo a faculdade da USP, um bairro calmo e próximo de tudo, e mesmo morando sozinha, sem poder ter a companhia de um animalzinho para me fazer feliz, eu ainda adorava tudo aquilo, e um emprego bom, onde eu poderia exercer minha tão sonhada profissão, tornaria tudo ainda mais perfeito.
Voltei a mim quando o celular começou a apitar enlouquecidamente sobre a cama enquanto eu secava os cabelos quase não ouvindo o barulho do celular por causa do barulho do secador de cabelos. Coloquei o secador, desligado, sobre a cama e atendi o celular.
— Aqui é Mellisa Surya, não posso atender no momento, mas deixe seu recado após o bip... PIIII...
— Mel...
— Para você, PIII...ranha.
— Sua vadia! – A voz risonha de Julia ecoou do outro lado da linha e eu comecei a rir.
— Peguei você!
— Você é uma mal-amada mesmo, precisa é de um namorado. – Eu gargalhei alto, me encarando de frente ao espelho vendo como estava o meu cabelo enquanto ria da minha amiga ao telefone.
— Nessa rádio podre que você trabalha tem algum homem que preste? – Eu brinquei e ela riu gostosamente do outro lado da linha.
— Tem, mas não é para o seu bico.
— Ah, não me diga, aposto que você vai querer todos para você, sua gulosa.
— Essa rádio podre onde você estará trabalhando amanhã, na verdade, tem muitos homens gostosos, te garanto. – Eu ri e neguei com a cabeça, me sentando na beira da cama.
— Não me deixa mais nervosa, Ju, eu ainda não fui contratada, nem fui na entrevista ainda.
— Falando em entrevista... – Ela começou e eu congelei por dentro.
— Ai, Deus, não me diga que remarcaram para daqui a cinco minutos. – Meu coração palpitava amedrontado e ansioso no peito.
— Não exatamente cinco minutos. – Meu coração congelou de vez no peito. – Você já está pronta?
— Julia! Não brinca comigo, quer me matar do coração? – Ela riu, mas eu percebi que era um riso contido, ela não estava de fato brincando, quatro anos estudando com ela me fizera aprender muita coisa.
— O Sr. Martins perguntou se você conseguia chegar um pouco mais cedo. – Arregalei os olhos e senti que ia morrer sem ar, meu sangue devia ter parado de correr nas veias ou eu tinha entrado dentro de um lago congelado em pleno inverno dos Estados Unidos, sabe aqueles lagos congelados que se você cair, você morre? Era eu caindo em um daqueles.
— Mais cedo quanto? – Eu tremia por dentro. Que não seja cinco minutos, nem quinze, nem meia hora, nem uma hora, nem uma hora e meia, nem duas horas. Ai que droga! Justo no dia que eu acordo atrasada.
— Vai ter um cantor bem famoso na rádio hoje e isso aqui já está ficando uma bagunça, então ele acha que seria melhor conversar com você antes, porque depois, vai ser uma loucura, esse bando de meninas não vai deixar a rádio tão cedo.
— Ai meu coração... que horas? – Eu não tinha tanto tempo mais, mesmo que já não tivesse muito tempo antes, eu sentia isso.
— Desculpe amiga, mas você tem exatos noventa minutos para estar aqui. – Morri, alguém chama o Samu para mim, por favor?
— Tem algum problema se eu chegar pelada, sem chapinha, só com o currículo? – Ela riu, solidária.
— Tudo ótimo, só não esquece da bolsa, você vai precisar do RG para entrar. – Quase chorei quando ela se despediu e eu desliguei o celular jogando-o sobre a cama. Noventa minutos para chegar até lá, melhor eu deixar o cabelo secar no caminho, fazer uma trança embutida eu mesma no metro e me maquiar no banheiro da última estação, onde eu colocaria a blusa de seda e o sapato de salto.
Quem disse que vida de pobre era fácil?



O calor na capital estava de matar, mas eu estava bem tranquilo no ar condicionado do meu carro de vidros fumês o que impedia as pessoas do lado de fora de me verem. Os óculos escuros diminuíam um pouco a claridade do sol de quarenta graus que fazia lá fora, talvez não estivesse mesmo quarenta graus, mas o ar seco de São Paulo, sem nenhum ventinho para aliviar o ar abafado, dava uma sensação de mais de quarenta graus, com toda certeza.
Eu adorava dirigir por aquela cidade, com o vidro fechado ninguém podia me ver, por isso, eu podia por algum tempinho ser apenas um sujeito normal, como qualquer outra pessoa na grande metrópole, dentro do meu carro, dirigindo pela cidade, indo para o trabalho, a grande diferença disso tudo era que, o meu trabalho incluía um monte de meninas gritando enlouquecidas onde quer que eu estivesse, e que eu não podia me dar ao luxo de sair para passear pelas ruas da cidade como a grande maioria fazia, essa era uma das coisas que eu mais sentia falta na minha vida, ser apenas um cara normal de vez em quando.
O transito a avenida que seguia para a Avenida Paulista estava, como sempre, carregado, e resolvi pegar um atalho por um caminho alternativo, algumas ruas paralelas à avenida principal da cidade me levaria ao mesmo lugar no final das contas. Aproveitando o caminho lento, resolvi ligar o aparelho de som automotivo do carro e sintonizei no canal da rádio para onde eu estava seguindo, estavam me anunciando o tempo todo, e hora ou outro o locutor da rádio deixava os ouvintes escutarem os gritos histéricos das meninas na porta da rádio, eu já podia imaginar a loucura que estava aquilo, um monte de meninas loucas, gritando meu nome, com pôsteres e mais pôsteres exibindo a minha cara, diante de tal pensamento, eu ri, sentindo já a euforia que elas me faziam sentir. A minha vida era uma loucura e por mais louco que tudo fosse, por mais que as vezes eu sentisse vontade de sumir um pouco, me isolar, passar um tempo sozinho e tranquilo, eu amava profundamente tudo aquilo, amava aquela loucura e a sensação que aquelas meninas me faziam sentir, podiam ser “loucas” como o locutor da rádio dizia, mas eram loucas por mim e isso já bastava para eu amar tudo aquilo profundamente, era exaustivo, mas eu amava.
Finalmente sai daquele transito e segui em outra avenida onde o transito fluía melhor, uma de minhas canções de sucesso começava a tocar no rádio e eu me empolguei, aumentando o volume e cantando junto comigo mesmo, era já uma maneira de aquecer a voz e já me preparar para o pequeno show que eu faria ao vivo na rádio mais tarde; eu cantava aquela música pelo menos três vezes por semana, no mínimo, mas ainda assim, eu gostava de cantá-la, era uma de minhas canções preferidas de mim mesmo, e pensar isso era até meio engraçado, mas era a verdade, pelo menos ninguém poderia dizer que eu cantava músicas só para ter sucesso, eu realmente amava as músicas que fazia e por isso elas faziam sucesso. Me distrai cantando a música enquanto dirigia no transito, com o som do carro mais alto e eu cantando a vontade dentro do carro.
Sorte que o vidro estava fechado.
O farol estava fechado e eu estava olhando pela janela, observando as pessoas caminhando, umas tranquilas, outras apressadas, pela calçada enquanto eu cantava como se estivesse em cima de um palco, mas dessa vez, ninguém assistia, apenas eu mesmo. O farol abriu, e eu sai pelo transito de São Paulo, perdido em pensamentos enquanto meu show sozinho, continuava.
Estava tão entretido em cantar minha canção, olhando o transito e perdido em pensamentos e sentimentos que só a música era capaz de fazer comigo que mal percebi que outro som ecoava dentro do carro, demorei quase um minuto para perceber que havia um outro som ecoando que não era da música, apertei o botão no volante para abaixar a música e constatar que meu celular já tocava no volume máximo, sinal que a pessoa do outro lado da linha estava insistindo tinha um tempinho já. Olhei para o painel ao lado, onde eu costumava deixar o celular no suporte de celular, mas não o encontrei lá, mas que droga, não me lembrava onde deixara o celular, pelo menos dentro do carro ele estava. O som do toque do celular aumentava e eu olhei para o banco ao lado, vendo que o celular estava sobre o banco do passageiro, quando eu o deixara ali era um mistério até mesmo para mim, ele estava vibrando e dançando sobre o banco, estava prestes a cair no chão do carro se eu não o pegasse logo. Diminui a velocidade do carro um pouco, e sem tirar os olhos da frente, me estiquei de lado, passando a mão direita sobre o banco numa tentativa de pegar o celular antes que ele caísse sobre o carpete do carro e fosse parar em baixo do banco. Desviei os olhos por um instante para ver se estava com a mão pelo menos próximo do celular, e diminui um pouco mais a velocidade, percebi pelo canto dos olhos que o farol mais a frente estava prestes a fechar, por isso fui diminuindo aos poucos e aproveitei para me esticar um pouco mais, olhei novamente para o lado no momento em que meus dedos se fechavam ao redor do aparelho celular e quando voltei a me sentar normalmente no carro, olhando a frente, senti meu coração congelar no peito, o farol de transito estava fechado. Levei um susto e pisei no freio instintivamente, largando o celular sobre o meu colo e segurando firmemente o volante, vendo que a frente não havia nenhum carro parado, mas ainda assim, haviam pedestres atravessando na faixa da rua, o que era quase tão pior quanto um carro parado à frente. Imaginei aquelas cenas de uma bola de boliche derrubando os pinos e passando por cima de todos e rezei para que isso não acontecesse comigo e meu carro e aquelas pessoas.
Senti meus olhos arregalando e ouvi o barulho de pneu derrapando ecoando alto e vi que uma moça estava atravessando a faixa, ela parou e olhou para mim e eu me vi quase numa cena de filme, onde o tempo para e as câmeras se focam primeiro na mocinha, parada no meio da rua, olhando o carro descontrolado, e depois no motorista, com os olhos arregalados e o carro freando até parar, a um centímetro de distância da moça e nada acontecia a ela. Eu esperava, no fundo do meu ser, que realmente parasse a um centímetro de distância e nada acontecesse.
O carro foi parando mais rápido do que eu até imaginava, sinal de que o freio do carro era tão bom quanto o carro todo e quando o carro parou, estava apenas um pouco acima da faixa de pedestres e eu diria que estava um pouquinho mais de um centímetro da moça, mas eu não havia passado por cima dela, o que era um alivio imenso, enorme, grande, gigantesco mesmo.
Eu olhei a frente e não vi a moça, ela havia caído e eu senti o pânico tomar conta de mim, será que eu passara por cima dela e não percebi? Será que eu batera forte demais nela e ela voara longe? O medo e o pânico estavam tomando conta de mim de tal modo que mal percebi quando a vi novamente em pé depois que se levantou, com os olhos arregalados, as duas mãos no capô do carro, o medo e o pânico tão visíveis nela quanto, com certeza, estavam em mim. Percebi que eu estava prendendo a respiração quando a soltei, respirando fundo, sentindo meu corpo todo tremendo. O carro havia parado, a moça estava viva, tudo estava bem.
Ou quase tudo.
Levei um susto quando a moça deu um tapa forte no capô do carro, e quando a encarei pelo vidro da frente percebi que ela não estava mais apavorada, ela parecia feroz.



Quando a Julia me disse que eu tinha noventa minutos para estar na rádio eu me senti dentro de um jogo cronometrado, eu era aqueles bonequinhos com tempo para passar de fase ou morria, o cronometro rodava do lado e eu saia correndo pulando barrancos, pegando moedinhas e matando os inimigos, ou quase isso. Enfiei tudo que precisava dentro da bolsa, o sapato de salto, a blusa de seda, o estojo de maquiagem, o laçinho bonito para a trança embutida, então vesti uma calça social, uma blusinha preta, justa, enfiei os pés numa sapatilha confortável e sai correndo, penteando o cabelo meio úmido pela rua enquanto corria até o ponto de ônibus, depois de quinze minutos dentro do ônibus, desci na estação Butantã e segui até a estação Trianon, nesse meio caminho, segui em pé dentro do metro enquanto fazia uma trança embutida, eu mesma, em meus cabelos, percebi que uma senhora me olhava impressionada do canto, mas apenas sorri para ela e terminei a trança a tempo de descer na estação Trianon-Masp, aquela estação daria no meio da Avenida Paulista, muito mais próximo da rádio do que qualquer outra, por isso, quando sai do metro, segui direto para o banheiro da estação, onde me maquiei com precisão e rapidez igualáveis a aqueles caras que trocam o pneu do carro numa corrida de formula um em dez segundos, coloquei a blusa de seda sobre a blusinha preta justinha, e enfiei o sapato de salto nos pés, guardando as sapatinhas no fundo da bolsa, torcendo para elas não estarem fedendo chulé, e então sai em direção à Avenida Paulista. Olhei para o relógio e respirei aliviada, eu ainda tinha quarenta minutos sobrando, talvez desse tempo de eu passar na papelaria e pegar o book, assim eu causaria uma impressão melhor ainda, aquele book curricular que a Ana Maria fizera para mim era perfeito, era impossível me negarem uma vaga com aquilo, a não ser que eu chegasse pelada, sem chapinha e só com aquilo nas mãos.
Parei na frente da estação e decidi passar na papelaria, era só eu não ficar conversando com ela uma vida e daria para voltar e chegar na rádio ainda com tempo de sobra, segui até a próxima esquina e virei à direita, descendo a rua lateral e seguindo até a próxima esquina, a papelaria dela ficava duas quadras abaixo da Avenida Paulista, não era tão longe, por isso eu nem precisava apressar o passo e correr o risco de chegar fedendo suor na entrevista.
Parei na esquina e esperei o farol de transito fechar enquanto pensava no que dizer quando chegasse na entrevista, será que o tal Senhor Martins era um cara bem-humorado ou aqueles patrões ogros, fechados, que viviam de mal humor? Eu devia ter perguntado a Julia, apesar de que, um cara, dono de uma rádio como aquela, era impossível ser mal-humorado ou ogro, ele tinha sob seu comando pessoas alegres, bem-humoradas e até piadistas, como ele seria ogro?
Resolvi mandar um Whatsupp para a Julia perguntando se eu devia me preocupar muito com o Senhor Martins, enfiei a mão na bolsa, puxei o celular e comecei a digitar a mensagem no momento em que o sinal de pedestres abria e eu seguia caminhando, meio lentamente como todo mundo faz quando está andando e digitando no celular ao mesmo tempo, estava tão distrai e entretida com a mensagem que mal ouvi o barulho de pneus derrapando, só dei por mim que algo estava errado quando ouvi um grito de susto e alguém gritando “Moça!”, parei de digitar e de andar e olhei para o lado e senti como num filme onde tudo congelava, e tudo que se via, em câmera lenta, era o carro vindo em sua direção; eu quase esperava ver a minha vida passando como um filme diante dos meus olhos, mas só que não, não foi nada disso, não foi em câmera lenta e nem vi a minha vida passando  na minha frente, foi ao contrário, foi tudo rápido demais, eu olhei para o lado, meu coração congelou no peito e eu vi o carro vindo na minha direção mais rápido do que eu esperava ou do que todo mundo esperava pela reação das pessoas a volta de mim ou do outro lado da rua e o carro freando e o barulho dos pneus no asfalto ecoando alto, e foi tudo tão rápido que eu não tive reação nenhuma a não ser arregalar os olhos e prender a respiração.
O carro foi parando rapidamente até chegar muuuuuito perto de mim, mas muito mesmo, quando o carro parou, eu sentia o para-choque dele tocando minha canela e meu corpo desequilibrando antes de eu cair para trás, de bunda no chão, mal senti a dor da queda, estava em choque, sentada no chão, imóvel pelo que pareceu uma eternidade, mas devem ter sido uns dez segundos, tão em choque que eu nem percebi quando apoiei as mãos no asfalto e me levantei, parando em frente ao carro. Soltei a respiração e encarei o motorista através do vidro da frente, mal dava para ver ele, mas eu vi um carinha lá dentro de boné mais fora da cabeça do que na cabeça e óculos escuros, todo estilinho playboyzinho, e então o sangue ferveu nas minhas veias: abri as duas mãos e bati as palmas das mãos com toda a minha força no capô do carro
O barraco estava armado.
Eu costumo ser uma doçura de pessoa, tão delicada, tão dócil que muita gente quase pensa que eu sou a madre Teresa de Calcutá ou que eu tenho sangue de barata, mas é exatamente aí que elas se enganam, eu sou sim, delicada, educada, gentil e dócil, até tirarem tudo isso de mim e minha paciência junto, se me tirar da minha paz, se prepara porque o Capitão Nascimento é fichinha perto de mim quando eu estou com raiva.
Aquele playboyzinho filho da puta quase me atropelara, ele ia pagar caro por aquilo.
Bati as duas palmas da mão mais uma vez no capo do carro e dei um passo para trás, sentindo minhas canelas doloridas, ele tinha batido em mim, devagar, para a sorte dele, mas para o azar dele, ele tinha batido em mim.
— HEY! – Eu gritei, gesticulando para o motorista e percebi que ele abria a porta do carro e saia, meio bambeando e tão nervoso quanto eu estava, mas acho que nossos nervosismos agora eram diferentes.
— Está tudo bem? – Ele perguntou, deixando a porta do carro aberta enquanto continuava parado lá, meio em choque, me encarando.
Ele era alto e jovem, não devia ser tão mais velho do que eu, talvez a minha idade ou um ou dois anos mais velho, talvez, parecia bonito, forte, eu via os músculos através da camiseta justa no peitoral e nos braços, os cabelos negros com o boné jogado em cima, meio de lado e meio que não na cabeça de fato e óculos escuros, ele não me era estranho, mas eu não estava prestando muita atenção em nada, só na raiva que corria como um carro de formula um nas minhas veias e meu coração que corria no peito tanto quanto aquele cara devia estar correndo nas ruas de São Paulo.
— Você me atropelou! – Eu disse, não respondendo diretamente à pergunta dele.
— Quase! Ainda bem que não foi nada, você está...
— Quase? – Que filho da puta, eu tinha caído de bunda no chão, e ele diz quase?
— Você está bem? O farol fechou muito rápido, eu não percebi. – Ele bateu a porta do carro e caminhou devagar em minha direção, olhando para o carro e para mim, como se tentasse ver algum dano em ambos, mas aparentemente não havia dano nenhum em nenhum dos dois, nem em mim e nem no carro, por enquanto.
— Você estava a o que? Duzentos por hora? Tá pensando que as ruas de São Paulo é o autódromo de interlagos? – Eu estava bufando como um touro enraivecido, como se o cara fosse um toureiro com aqueles panos vermelhos, sacudindo na minha cara, e eu bufasse nervosa, doida para jogar ele para os ares.
— Eu não estava correndo, só não vi o farol fech....
— Você é cego ou o que? – Eu mal deixava ele falar, estava mais nervosa do que devia, e talvez aquilo fosse uma reação ao medo que eu passara.
— Hey, calma! Você machuco...?
— Calma você pede para o papai! Olha para mim! – Olhei para mim mesma e vi que minha calça social preta estava suja na lateral, que droga!
— Você machucou? Acha que precisa de um médico? – Bufei de raiva, agora ele queria me levar para o médico? Ele que ia para o médico daqui a pouco quando eu quebrasse o nariz daquele playboyzinho idiota.
— Eu estou bem! – Ou não, como eu ia fazer uma entrevista naquele estado de pânico e nervosismo agora?
— Deixa eu te levar a um médico, eu pag...
— Eu não quero dinheiro nenhum de playboyzinho metido a besta. – Coloquei a mão no ombro como se fosse ajeitar minha bolsa e então percebi que ela não estava mais lá, olhei a volta e vi minha bolsa caída no chão, quando olhei para a bolsa, reparei que tinha bastante gente em volta, olhando para nós, que droga, que vergonha, rezei para que o helicóptero do Comandante Hamilton não estivesse ali e eu aparecesse no programa do Datena ou minha mãe morreria de susto lá em casa, no interior de São Paulo.
Eu vi que ele deu alguns passos à frente, tentando se aproximar de mim.
— Me desculpe, eu não vi o farol, você não precisa mesmo de nad...
— Só tente não atropelar ninguém da próxima vez que sair por ai, idiota! – Era melhor eu esquecer aquele otário e seguir meu rumo antes que perdesse a hora para a entrevista. Peguei a bolsa que havia caído no chão, colocando-a sobre o meu ombro, e me virei, dando alguns passos, mas quando dei dois passos me senti mancar de leve, as canelas doíam pela batida, mesmo que de leve e eu vi ele caminhar até mim, parando ao meu lado e segurando meu braço, atencioso.
— É melhor eu te levar para o hospital. – Puxei meu braço com toda a força que tinha e o encarei, na verdade, encarei eu mesma pelo reflexo dos óculos escuros dele, no fundo de mim eu tinha certeza que já o vira em algum lugar, e no fundo de mim eu estava pensando o quanto aquele cara era lindo, com uma barba rala por fazer, pequenas costeletas na lateral do rosto, uma boca grossa e vermelha, os músculos fortes no braço que me segurou, nossa, ele era extremamente lindo e gostoso, mas eu não queria saber de nada daquilo naquele momento, eu estava irritada demais, tinha um monte de gente me olhando agora, eu estava tremendo, nervosa, as vésperas de uma entrevista mega importante para mim, e tudo isso por causa daquele idiota. Aquele dia não podia se tornar pior, podia?
— Eu estou ótima. – Eu disse, secamente, o encarando de frente. – Não preciso da ajuda de gente como você, que acha que pode tudo só porque é um filhinho de papai, vagabundo, que tem dinheiro do papai de sobra para limpar suas sujeiras. Essa cidade ficaria bem melhor sem playboyzinhos como você.
Me virei e sai andando, sem nem me lembrar para onde eu ia, sei que sai andando sem olhar para trás, não sei o que o playboyzinho fez, mas provavelmente voltou para o carro e seguiu para a mansão do papai dele para chorar as pitangas. Eu me sentia tremendo por dentro, tremia tanto que mal consegui segurar a bolsa para procurar meu celular, eu nem conseguia me lembrar se eu guardara o celular quando vi o carro vindo na minha direção, ou se eu guardara depois, eu não conseguia lembrar de nada, minha mente era um branco em algumas coisas daquele incidente, eu só sabia que precisava me apressar, perdera muito tempo com aquele babaca e ia acabar perdendo a hora da entrevista.
Cheguei na papelaria da Ana Maria em dois minutos, ela não estava, o que foi uma sorte imensa minha ou eu perderia mais meia hora ali contando para ela do acontecido e me conhecendo, do jeito que conhecia, eu sabia que se começasse a contar eu ia chorar, porque quando a adrenalina passasse e o nervoso também, eu choraria, era sempre assim depois de qualquer briga, eu sempre chorava no final.
Peguei meu book curricular, enfiei na bolsa e voltei pelo mesmo caminho que tinha feito, dessa vez olhando mil vezes antes de atravessar a rua e tentando não parecer conhecida para ninguém que me viu estatelar no meio da rua.
Cheguei na Avenida Paulista menos de cinco minutos depois e segui pela calçada em direção a rádio, eu conhecia bem aquele lugar, por isso sabia que não demoraria muito para chegar até lá, enquanto caminhava na calçada percebi que algumas pessoas ficavam me olhando e me perguntei se naquele susto do atropelamento ou quase, minha trança se descabelara ou algo assim, puxei a bolsa e enfiei a mão dentro dela, tateando as cega em busca do meu celular, mas não achei, estava começando a ficar nervosa.
Quando atravessei a próxima rua, vi uma multidão de meninas em frente do que eu tinha certeza que era a rádio, tinha até esquecido que a Julia mencionara que um cantor famoso estaria na rádio naquele dia e ficaria cheio de fãs lá. Eu nem tinha ideia de que horas eram mais, nem se meu cabelo tinha se desfeito ou como estava minha aparência depois daquele maldito filhinho de papai me atropelar, mas acho que me deixariam usar o banheiro antes da entrevista, e talvez alguém pudesse me informar as horas.
Segui caminhando em direção as meninas, vendo elas gritando, sacudindo pôsteres e comecei a me perguntar por onde eu entraria, será que tinha uma passagem ali no meio daquela muvuca? Comecei a andar por entre todas aquelas garotas, pedindo licença aqui, licença ali, fui me espremendo no meio delas, sendo empurrada vez ou outra e quase gritando que eu não era uma fã histérica, não queria ver ninguém, só queria entrar e fazer minha entrevista e conseguir aquela bendita vaga que eu precisava tanto.
Com dificuldade fui passando entre as meninas e consegui chegar até a escadaria da frente que daria acesso ao prédio da radio, onde tinha alguns seguranças tentando manter a ordem, então ouvi duas vezes uma garota chamar “moça, moça”, e quando me virei vi ela me olhando e gesticulando, de início eu não entendi o que ela dizia, quando consegui entender percebi uma coisa:
O meu dia ruim estava longe de terminar.
— Moça, a sua calça. – Olhei para ela com o rosto franzido, e então me virei, com o coração martelando no peito e olhando para baixo, o que tinha de errado com a minha calça?
Olhei para baixo e não vi nada de errado, subi os degraus, cheguei nos seguranças e informei que eu tinha uma entrevista com o Sr. Martins, me deixaram passar e eu segui até a recepção do prédio onde uma moça sorria, educada para mim assim que me aproximei.
— Olá, em que posso ajudar? – Eu estava preocupada com a minha calça, com a minha aparência e com as horas, por isso demorei alguns segundos para me recobrar e responder a pergunta, então sorri, meio sem jeito.
— Eu vim fazer uma entrevista com o Sr. Martins. – Eu comecei a dizer e ela disse um sonoro e reconhecível “Ah, sim, fui informada”. – Então, mas antes eu precisava ir ao banheiro, eu tive um incidente na rua, não sei se meu cabelo ou minha maquiagem estão no lugar ainda, nem como eu estou...
Ela sorriu, cumplice, afinal, era mulher né, ela sabia como era essas coisas, por isso assentiu e pediu meu documento de identidade antes de me deixar entrar. Depois de me cadastrar no seu sistema, me deixou passar e ela se virou para me informar o caminho do banheiro.
— Você segue esse corredor, na primeira porta a esquerda fica o banheiro feminino. – Eu sorri e assenti e me virei para seguir o caminho que ela me informou, quando eu virei, ouvi ela me chamar em seguida. – Hãn, senhora? – Me virei e a encarei, com uma cara de “ai meu Deus, o que foi dessa vez?” – Hum... a sua calça, acho que ela está rasgada.
Um balde de gelo desceu pela minha garganta, passou pelo coração, seguiu pelo estomago até o intestino, deu meia volta, entrou nas veias e foi seguindo todo o caminho do meu corpo, órgão por órgão, me congelando inteira, quase me petrificando naquele lugar.
Rasgada? A minha calça estava rasgada? Como assim rasgada?
O pânico foi tão grande que eu nem percebi que saíra correndo em direção ao banheiro que ela indicara, cheguei a frente dele e empurrei a porta com força, escancarando-a e sentindo já o aperto do choro na minha garganta; ouvi o barulho da porta vai e vem voltar com tudo ao seu lugar e corri até a área grande do banheiro, onde ficavam as pias, os sanitários e o espelho, parei em frente ao espelho grande e me virei, tentando enxergar alguma coisa, mas eu não conseguia ver nada. Tirei a bolsa do ombro e coloquei sobre a pia e me olhei de frente, aparentemente na frente a calça estava normal, me virei de costas e olhei por sobre o ombro, tentando enxergar alguma coisa, mas estava um pouco difícil de ver, me estiquei mais um pouco, esticando o pescoço e sentindo-o doer pelo esforço, então vi alguma coisa, parecia um...
— Está rasgado. – Levei um susto tão grande que quase quebrei o pescoço, uma moça estava saindo pela porta de um sanitário atrás de mim e agora estava parada olhando para o espelho e para mim através do reflexo. – O que aconteceu? Parece que você caiu e rasgou a calça, está um pouco suja e tem um rasgo no meio, não dá para ver de longe, mas com certeza dá para ver de perto e quando você anda, deve aparecer sua calcinha.
Arregalei os olhos e olhei novamente para mim mesma no espelho, com o pescoço torto, tentando enxergar. O choro veio mais forte até a garganta e eu tentei engoli-lo.
— Quer um espelho? – Ofereceu a moça enquanto eu começava a murmurar baixinho comigo mesma “ai não, ai não, ai não”.
Ela enfiou a mão na bolsa e puxou um espelho mediano de dentro de uma bolsinha, ele devia ter uns quinze centímetros por dez, então ela parou a minha frente e ergueu o espelho e eu pude ver toda a minhas costas e meu bumbum, vendo que havia ali, literalmente, um rasgo, de verdade.
— Ai não. – Eu disse, por fim, em voz alta, com as lagrimas começando a embaçar meus olhos.
Me virei e me encarei no espelho, vendo meu rosto embaçado pelas lagrimas que enchiam meus olhos e vi que a moça parava ao meu lado, me observando. Então eu respondi à pergunta que ela fizera antes.
— Eu caí na rua, na verdade, um idiota me atropelou, ou quase me atropelou e eu cai de bunda no chão, eu não percebi que a calça tinha rasgado, acho que foi por causa do susto. – Passei a mão de leve no rosto, tentando secar a primeira lagrima que rolava por meu rosto. Eu estava ferrada, agora mais do que nunca.
— Ai, poxa, que droga! – Disse a moça, sentindo pena de mim, e quem não sentiria? Olha o meu estado, andando em plena Avenida Paulista com um rasgo na bunda, todo mundo vendo minha calcinha e minha bunda, calcinha fio dental ainda por cima, meu deus, que vergonha!
Não conseguiria segurar mais o choro, ele começou a vir sem controle, as lagrimas caindo por meu rosto, incontroláveis, levei as duas mãos ao rosto e tentei controlar os soluços, a moça pareceu se derreter de dó e pena.
— Ah, meu Deus, não fica assim, a gente vai dar um jeito, alguém deve ter uma calça sobrando por ai, você não vai embora mostrando a bunda, fique tranquila, nem que seja com uma bermudinha de criança nas pernas, você não vai embora pelada. – Eu ri fraco, ri mais pela desgraça de tudo do que pelo que ela falava enquanto me abraçava agora tentando me acalmar, a coisa era bem pior do que parecia, essa era a verdade, como eu ia fazer uma entrevista com a bunda de fora?
Afastei-me um pouco da moça e passei as mãos pelo rosto tentando secar as lagrimas e vendo que eu ia borrar tudo minha maquiagem, acho que ela percebeu o mesmo e me entregou um pedaço de papel para secar as lagrimas sem que eu virasse um urso panda.
— O pior não é isso, o pior é que eu vim fazer uma entrevista! – A mulher arregalou os olhos e depois murchou, percebendo minha situação.
Havia um sofá pequeno de espera na área ao lado da área de espelhos e sanitários, dentro do banheiro, e eu segui até ele, me sentando, a moça sentou ao meu lado, eu notei pela primeira vez que ela estava gravida, mas não disse nada.
— Você é locutora? – Ela perguntou e eu suspirei, me recobrando do acesso de choro.
— Não, vim fazer uma entrevista para auxiliar de relações públicas, e agora foi tudo para o saco. – Suspirei de novo e a moça assentiu, tristemente, me observando de lado.
— Talvez a recepcionista tenha uma calça social guardada no armário, eu posso ver também o que consigo, se o Lu não chegou ainda, posso pedir para ele passar numa loja no caminho, do jeito que ele é enrolado, eu aposto que ele nem saiu da cama ainda. – A moça foi dizendo, mas eu nem estava prestando muita atenção, ela era muito gentil, mas coitada, ela não podia pedir para os outros me ajudarem assim né, eu tinha que me virar.
— Meu Deus, a Julia! - A Julia trabalhava ali, aquilo me veio tão de repente na cabeça que eu me levantei com tudo. Dei passos apressados de volta a área das pias e peguei minha bolsa que ainda estava lá e voltei correndo para o sofá. – A minha amiga trabalha aqui, foi ela que me indicou para vaga.
Sentei no sofá e abri a bolsa, olhando dentro dela e fuçando tudo em busca do meu celular, mas não conseguia achar, então comecei a tirar tudo e colocar do outro lado do sofá, fui tirando tudo, o book curricular, a carteira, as sapatilhas, o estojo de maquiagem, pente, creme, perfume, bolsinha de moedas, fui colocando tudo de lado, tudo, até minha bolsa estar vazia, então me senti outra vez caindo no lago congelado, eu era o Titanic afundando depois de bater no iceberg.
— Meu celular! Meu Deus, perdi meu celular! - A mulher me olhou, uma mescla de incredulidade, pena e algo como “meu deus, minha filha, você não devia ter saído de casa hoje”. – Ah meu Deus, não acredito!
— Ela trabalha aqui? Eu posso sair e procurar ela. – Eu assenti, já me sentindo sem esperanças de nada, pelo jeito, eu já estava prestes a perder a entrevista, com a calça rasgada ainda, sem chances alguma, e eu só não me deixava ser vencida pelo choro e desespero porque aquela mulher estava do meu lado, eu não ia esmorecer na frente de uma estranha.
— Alguém traz um balde de agua benta, por favor, porque eu preciso urgentemente. – A moça riu e colocou a mão no meu ombro, me consolando.
— Calma, tudo vai dar certo, Okay. – Eu sorri, em agradecimento. O celular dela começou a tocar e eu vi ela olhando e atendendo, se levantando e caminhando até a área das pias, e eu fiquei ali, me sentindo afundando, igual o Titanic.
— Ah graças a Deus, você não respondia minhas chamadas e minhas mensagens estava preocupada já! Aonde você está? – Eu não queria ouvir a conversa da moça, mas era impossível, o banheiro era grande e o eco da voz dela ressoava em todos os pisos e azulejos, eu comecei a guardar as coisas dentro da minha bolsa enquanto ela continuava falando com sei lá quem, talvez o marido dela, pelo tom de voz dela, ou era o marido ou o filho, ela parecia meio dona dele. – Calma, olha, depois você me conta, eu preciso de um favor urgente, preciso que você compre uma calça social para mim, quer dizer, não é bem para mim, mas é para mim. – Me virei e olhei para a moça, gente, ela nem me conhecia e estava pedindo para o marido comprar uma calça para mim. Meu coração se encheu de gratidão e eu quase comecei a chorar de novo. – É para uma amiga na verdade, mas preciso que você... Que? Já chegou? Mas você já entrou? Não, não, volta e vai em alguma loja, na paulista, em qualquer lugar, eu preciso dessa calça urgente... Que? Não dá para voltar? É claro que tá cheio de fã, né, você sabe disso... Ah, droga, tá no estacionamento. – Ela se virou e eu percebi que essa última parte era para mim, mas eu não disse nada e ela voltou a atenção para o marido. – Okay então, vai entrando, eu já encontro você, estou resolvendo uma coisa. Entra ai e se vira, você consegue se virar sem mim cinco minutinhos, né?... Okay, beijo.
Ela desligou o celular e voltou até mim, eu já tinha guardado quase tudo, mas estava com o book na mão agora, olhando para ela, meio perdida, e agora, o marido dela não ia poder me ajudar também. O que eu ia fazer?
— Posso ver? – Ela perguntou, indicando meu book, e eu assenti, acho que não ia precisar dele mesmo.
Ela abriu e olhou por cima, enquanto eu me recostava no sofá com a bolsa no colo, me sentindo acabada, como se não tivesse sido um idiota num carro que me atropelara, mas sim um trem, passara por cima de mim inteira e não deixara nada.
— Como chama a sua amiga? Eu vou sair e conversar com algumas pessoas que conheço, e procurar sua amiga, nós vamos dar um jeito nisso, Okay? – Eu sorri, assentindo, enquanto ela pegava a bolsa em cima da pia e voltava até mim, ainda segurando o book na mão, eu, como sempre, nem percebi isso. – Arrume a maquiagem e o cabelo, você vai nessa entrevista nem que eu tenha que tirar a minha calça e dar para você.
Eu ri, meio incrédula, e sorri depois em gratidão, eu mal conhecia aquela mulher, mas já me afeiçoara a ela, ela estava ajudando assim, sem nem pensar, de todo o coração, alguém que ela nem conhecia. Engoli o nó na garganta e sorri, vendo ela saindo, e levando meu book com ela, tudo bem, ela ia voltar com a calça, não ia?
Eu esperava que sim, esperava do fundo do meu coração que sim. Ou eu estaria mais ferrada ainda.


Eu não sabia dizer ao certo o que acontecera naqueles minutos depois que eu atropelei, ou quase atropelei, aquela mulher, mas sei que ela havia surtado de vez e depois ido embora e eu fiquei ali, parado no meio da rua, as pessoas me olhando, sem saber o que fazer e rezando para que ninguém me reconhecesse, ou eu estaria mais perdido ainda. Quando ia me virando para voltar para o carro, percebi alguma coisa reluzindo no chão, me virei e vi uma coisa na frente do carro, no asfalto, me abaixei e peguei: era o celular da louca.
Me levantei e segui até o carro, abri a porta, entrei e a fechei, dando partida no carro e seguindo meu caminho antes que alguém gritasse: “Olha, é aquele cantor famoso, ele que atropelou a mulher maluca”. Melhor não arriscar.
Joguei o celular dela no banco do passageiro e coloquei o meu no suporte e então segui em direção a radio, rezando para que ninguém tivesse mesmo me reconhecido e filmado, enquanto dirigia e pensava nisso, fiquei lembrando a mulher maluca, ela com certeza não me reconhecera, senão porque ficaria me chamando de filhinho de papai? Que mulher mais maluca, eu não havia atropelado ela por querer e ficou agindo como se eu tivesse atentado contra a vida dela de propósito.
Tentei não pensar mais naquilo o que eu nem precisei de muito esforço, quando cheguei perto da radio, pelo outro lado, vi a multidão em frente à radio, dezenas de meninas gritando meu nome e sacudindo pôsteres freneticamente. Sorri e segui em direção ao estacionamento subsolo da rádio, onde estacionei e fiquei um tempo dentro do carro, pensativo.
Olhei para o banco do carro e vi o celular, pegando e analisando a tela, apertei o botão do meio e vi o rosto de uma mulher bonita que certamente não era a mesma que eu atropelara, ou era? Os cabelos eram louros, bem louros, quase brancos, os olhos eram azuis, um azul cristalino, havia leves sardas no nariz e nas bochechas e os lábios eram vermelhos, mas ela não parecia estar usando maquiagem na foto, na verdade, parecia uma foto bem natural, ou ela usava maquiagem de maneira bem nude, como as mulheres diziam, ou ela não estava usando maquiagem, mas uma coisa era certa, com ou sem maquiagem, ela era absolutamente linda.
Fiquei olhando um tempo e pensando, como eu ia avisar ela que estava com o celular dela? Não tinha o número dela ali escancarado no aparelho, como eu ia descobrir o número dela só com o celular? E mesmo que descobrisse, não ia adiantar ligar para ela uma vez que, o celular dela estava comigo, né? Então, a minha única saída era esperar que ela ligasse para o próprio celular, então eu poderia marcar um dia para devolve-lo, isso se ela quisesse mesmo encontrar comigo, um playboyzinho filhinho de papai. Ri comigo mesmo e guardei o celular no outro bolso, então abri a porta e segui para mais um dia de trabalho, deixando para trás aquele dia louco e aquela mulher mais louca ainda.
Entrei no elevador e sai no térreo da radio, próximo a recepção e quando olhei em direção a porta, senti como se o chão começasse a tremer, algumas meninas me viram e uma gritaria ecoou tão fortemente que eu acho que as pessoas lá no Itaquerão ouviram. A recepcionista riu e me olhou, me fazendo sorrir e dar de ombros, com uma carinha de “poxa, sinto muito”, eu acenei um thauzinho e as fãs gritaram mais ainda, quase invadindo a radio, então eu resolvi correr dali antes que fosse tarde demais para minha pobre alma. Eu amo minhas fãs, mas elas sabem como arrancar pedaços de você sem que você nem perceba. Coisas simples da vida de um cantor famoso.
Segui pelo corredor rindo, sorrindo e acenando para as pessoas que passavam por mim, pensando, onde aquela Joana está? Eu havia ligado para ela do estacionamento, mas ela dissera que era para eu me virar sem ela porque estava ocupada com alguma coisa, vai entender essas mulheres, talvez eu devesse arrumar um assistente homem, ele pelo menos me entenderia e saberia o que eu quero, ou não, as mulheres sabem cuidar melhor de um homem.
Quando estava quase no meio do corredor, um cara veio sorridente na minha direção.
— E ai! Que prazer ter você aqui de novo, cara! – Eu sorri e cumprimentei o Paulo, um locutor da rádio que eu conhecia há anos.
— O prazer é meu, cara! – Ele deu um tapinha no meu ombro e brincou.
— E ai, como conseguiu passar pela avalanche? Tem umas quinhentas meninas na porta da radio, cara, que isso! – Eu gargalhei e assenti com a cabeça. Que isso? Você não viu nada ainda.
— Ah cara, a gente dá um jeito né, tô acostumado já.
— Pow, quisera eu ter tanta mulher assim no meu pé. Mas, se bem que, minha mulher iria me matar. – Ele gargalhou e eu ri junto, emendando.
— É por isso que eu sou solteiro. – Ele soltou uma risada alta que ecoou por todo o corredor.
— Boa! – Demos um toquinho de mão e ele seguiu comigo em direção ao elevador.
— Vamo lá, que hoje o bicho vai pegar. – Eu sorri e entrei no elevador, quando as portas se fecharam, senti alguma coisa vibrando no meu bolso e já imaginei que era a Joana querendo saber onde eu estava, mas quando puxei o celular do bolso, percebi que não era o meu que vibrava, era o celular da louca que eu atropelara.
Olhei a tela e fiquei meio receoso, não tinha nome, era um número desconhecido que ela não tinha nos contatos do celular, arrisquei mesmo assim e atendi.
Quando eu disse “alô”, uma voz feminina ecoou do outro lado. Eu reconheci na hora de quem era.
— Você está com o meu celular! – Dei um sorriso debochado como se a louca pudesse me ver.
— Ah sim, parece que uma louca saiu correndo e deixou largado no meio da rua. – Eu quase podia ver aquela carinha linda que vi no celular ficar vermelha e bufar como um búfalo, que fora o que ela fizera na rua só porque eu quase a atropelei sem querer.
— Louca? É sua mãe, seu filho da puta, eu quero meu celular de volta! – Eu segurei o riso e o Paulo, que estava parado ao meu lado, me olhou, acho que ele ouviu os gritos da louca e eu sorri para ele, dando de ombros.
— Claro, pode vir buscar, mas eu tô meio ocupado no momento, se puder esperar um pouquinho, tenho só que vencer umas três rachas antes. – Segurei o riso e ouvi ela bufar do outro lado, aproveitei e emendei, ironicamente. – Ah, tudo isso antes do meu papai pagar minha fiança na cadeia, é claro.
Eu tinha certeza que a louca estava espumando do outro lado da linha e eu estava me segurando para não começar a gargalhar da cara dela pelo telefone. O meu amigo do meu lado percebeu que eu estava zoando a menina e riu.
— Seu idiota! Estou falando sério, eu quero o meu celular, ou vou na delegacia e vou dizer que você roubou!
— Vai na delegacia? Ah, então nos encontramos lá mais tarde. Até mais. – Eu fingi que ia desligar e ouvi o grito dela do outro lado.
— Espera!
— Hum?
— Cara, é sério, pelo amor de Deus, meu dia está tremendamente horrível... Eu preciso do meu celular! – Ela estava quase chorando e eu senti pena dela por um momento, talvez fosse por isso que ela agira que nem uma louca para cima de mim então, o dia estava horrível, não que eu tivesse culpa, obviamente, mas realmente fiquei com dó dela.
— Olha, não é minha culpa se o seu dia está horrível, mas tudo bem, eu posso...
— Mas é culpa sua, SIM! Por sua culpa eu estou presa no banheiro, quase pelada e perdi a entrevista da minha vida! Agora, devolve meu celular!
O elevador apitou e parou, abrindo as portas, e eu sai, vendo várias pessoas conversando, rindo, e me olhando, acenando, dando oi, me cumprimentando. Eu não tinha tempo para aquela louca agora.
— Okay, eu vou devolver o seu celular, fica tranquila, mas me liga daqui umas duas horas, Okay? Agora eu estou realmente ocupado, tenho uma entrevista para dar e um show para fazer.
— Idiota, você está pensando que isso é brincadeira... – Ouvi ela dizer, mas não deixei ela continuar.
— Tchau. - Eu estava quase desligando a ligação.
— Por favor! – Eu suspirei, mas que droga, por que eu não conseguia ser ruim?
— Olha eu tô falando sério, eu tô na rádio agora, não posso falar. Me liga depois e marcamos para eu te entregar o celular, Okay? Eu vou entregar, prometo.
Ela ficou muda um tempo, o que foi até estranho.
— Alou? – Eu disse e então ela respondeu.
— Você está na rádio? Na rádio que tem um monte de menina louca na porta gritando que nem...? – Ela perguntou e eu dei de ombros, como se ela pudesse me ver.
— Sim, e preciso mesmo deligar, vou entrar no ar. Me liga depois, Okay? Beijo louca.
Eu ri e não esperei ouvir a resposta dela dessa vez, desliguei a ligação em seguida, e depois apertei o botão para desligar o celular dela, era melhor desligar aquilo ou ela ficaria ligando que nem uma louca, que ela realmente era.



— Olha, encontrei uma saia social linda e perfeita, acho que serve em você. – A moça entrou no banheiro e eu me virei, sentindo meu coração pulsando forte no peito. A recepcionista, a pedido da moça, havia ido ao banheiro me levar um copo de agua para me acalmar, e depois de conversarmos rapidamente sobre os lamentáveis acontecimentos comigo naquele dia, ela me emprestara o celular e eu acabara ligando para mim mesma para constatar que aquele idiota que me atropelara estava com meu celular, mas havia outra coisa agora martelando na minha cabeça, ele dissera que estava na rádio. Será que ele estava na mesma rádio que eu?
Me perdi dos pensamentos quando me virei e vi que a moça me esticou uma saia realmente linda a minha frente e eu sorri, colocando o celular do lado no sofá e pegando a saia para dar uma olhada.
— Será que ainda dá tempo de fazer a entrevista? A essa altura do campeonato, eu já perdi a hora. – Fui dizendo enquanto seguia para um dos banheiros para experimentar a saia.
— Não se preocupe, eu conversei com o Ricardo, ele entendeu a situação e disse que vai atende-la normalmente.
— Ricardo? – Eu estava dentro do reservado do banheiro tirando a calça, havia fechado a tampa do vaso e colocado a saia dobrada em cima, e agora tirava a calça e a colocava sobre a tampa, pegando a saia em seguida para vesti-la.
— Ricardo Martins, é ele quem vai te entrevistar, não é? Eu tenho certeza que sim, ele sabia muito bem quando falei da entrevista, só esqueci de perguntar seu nome, então eu não sabia se estávamos mesmo falando da mesma pessoa.
Eu ri, que coisa mais idiota, no fim das contas, eu nem havia mesmo me apresentado.
— Melissa, mas pode me chamar de Mel. – Eu disse, terminando de vestir a saia e me olhar por cima, constatando que parecia que havia servido. – Ele sabe que eu estou com a calça rasgada?
Ouvi ela rir, antes de responder.
— Não, eu disse que na verdade você fora atropelada por um louco quando estava vindo para cá e tinha ficado um pouco nervosa, que perdeu o celular e enfim, eu fiz um teatrinho, mostrei todo o drama da situação e ele entendeu, eu disse que você estava no banheiro, que eu havia te conhecido e você estava querendo ir embora pensando que havia perdido a entrevista e por isso eu tinha ido falar com ele.
Eu abri a porta e ela me olhou e então arfou, sorrindo em seguida.
— Ficou perfeita! Nossa, ficou linda! – Eu sorri, em agradecimento e parei em frente ao espelho, me olhando e percebendo que ela não estava mentindo, eu estava linda naquela saia.
— Como vou fazer para devolver? – Ela fez um gesto com a mão de quem diz “não se preocupe com isso”.
— Você me liga outro dia e eu pego com você, não se preocupe com isso agora. – Eu assenti, sorrindo, me sentindo de repente abençoada por, no meio de tantas coisas loucas e horríveis, ter encontrado uma mulher tão boa que me ajudara daquela maneira.
— Eu nem sei como agradecer. – Eu me virei e olhei para ela, ela ia ser uma mãe e tanto com aquele coração do tamanho do mundo. Ela sorriu e passou a mão carinhosamente nos meus ombros, como se ajeitasse minha blusa.
— Agradeça conseguindo essa vaga, mas se não conseguir, me avise, com aquele currículo eu sei muito bem onde você pode trabalhar.
Eu sorri enormemente, sentindo vontade de chorar, dessa vez de agradecimento, alivio, felicidade.
— Obrigado. Você é um anjo! – Ela sorriu e me abraçou, carinhosamente, e eu me controlei para não chorar de verdade agora.
— Agora vamos lá, vai lá arrasar naquela entrevista. – Eu sorri e segui até o sofá, pegando minha bolsa e o celular da recepcionista que eu deixara ao lado.
Parei próxima a porta e a moça me entregou meu book curricular.
— Aí dentro tem um pedaço de papel, tire antes que perca, é o meu telefone, quando estiver com o celular, me ligue.
Eu assenti, agradecendo mais uma vez.
— Mais uma vez, um milhão de obrigados! – Ela me abraçou mais uma vez, depois abriu a porta e saímos nós duas pelo corredor da rádio, enquanto as meninas ainda gritavam mais enlouquecidas do lado de fora. Eu ainda nem tinha me atentado por quem elas gritavam tanto.
Depois de devolver o celular da recepcionista, eu segui pelo corredor ao lado da moça, eu não perguntara em nenhum momento o que ela era ali ou fazia ali na rádio. Eu queria perguntar isso e perguntar também quem era o tal cantor que estava na rádio, mas eu estava preocupada demais com a minha situação que esqueci as perguntas tão rápido quanto elas vieram na minha cabeça.
Seguimos pelo corredor e entramos no elevador, eu nem sabia para onde estava indo, mas acho que ela sabia.
Eu começava a tremer de novo, de nervoso e ansiedade. Tanta coisa tinha acontecido naquele dia que eu temia mais que tudo aquela entrevista, e rezava para mais nada de ruim acontecer, levando em consideração tudo que já tinha acontecido, né. A moça percebeu meu nervosismo e segurou minha mão.
O elevador parou e ela me olhou, sorrindo confiante.
— Vai dar tudo certo, vai lá. É a última sala a esquerda. – Eu sorri e a abracei, me despedindo.
— Eu te ligo assim que o idiota devolver meu celular. – Ela riu e assentiu.
— Vou esperar. Boa sorte! – Eu sorri e sai do elevador, dando um aceno de adeus e vendo as portas se fecharem.
Agora era o momento mais temido do meu dia. Eu só rezava para que nada de ruim acontecesse novamente.



Diversão, era a palavra para certas partes do meu trabalho e minha vida, por mais que aquilo fosse o meu trabalho, mesmo que diferente do trabalho da grande maioria das pessoas, eu me divertia muitas vezes com aquilo, e aquele dia eu estava me divertindo muito, aqueles caras da rádio eram uma piada, sempre engraçados, com piadinhas ou tirando com a sua cara de tal maneira que até mesmo eu caia na gargalhada, era impossível não rir.
— Mas nunca invadiram seu quarto de hotel? – O Paulo, o locutor que eu encontrara no corredor mais cedo era um dos que estavam me entrevistando, ele e o Mário, ambos muito engraçados, eram quase uma versão do Pânico, só me faziam mais rir do que responder.
— Já tentaram, com certeza já tentaram. – Eu respondi, vendo as ideias já brilhando nos olhos dos dois.
— Imagine também se invadem.
— Se você tiver dormindo no meio da noite elas te acordam rapidinho, né? – O Paulo gargalhou e eu comecei a rir, já sabendo o que eles iam falar.
— Ah, com certeza, do jeito que aquelas fãs são taradas, ele vai acordar pelado com a menina em cima dele – O Mario gargalhou tão alto que eu acho que os ouvintes provavelmente tiveram que abaixar o volume do rádio naquele momento.
— Mas o negócio vai ficar duro automaticamente? – Indagou o Paulo e eu nem me dei ao luxo de responder nada, eu só ria, minha barriga já estava ficando dolorida de tanto rir.
— Mas tem que ser um baita de um boiola mesmo para não ficar duro com uma mulher em cima de você né, Paulo? – Eu gargalhei e vi o Paulo também rindo, eles não levavam nada ao pé da letra, sabiam que eram tudo zoação, o Paulo aproveitou a zoeira e me perguntou:
— Você não é boiola, não, né, cara? – Eu gargalhei, negando com a cabeça primeiro.
— Que isso, cara, sai fora.
— Vai adorar então acordar com uma fã em cima de você.
— Pow, melhor ainda se ela me acordar com a boca. – Os dois gargalharam e eu ri junto, esperando profundamente que a minha mãe não estivesse ouvindo a minha entrevista na rádio.
— Mas como vocês falam porcaria, que falta de respeito com as fãs. – Zoou o Paulo.
— Vamos cantar?
— Se eu começar a cantar a porta dessa rádio vai encher mais do que hoje... – Começou o Paulo e eu voltei a rir.
— Ah, é mesmo?
— É, cara, muito mais gente vai querer vir na porta da rádio.
— Pow, então você é bom mesmo, heim.
— Vai lotar isso aqui, vai vir muita gente, quanto mais eu cantar mais gente vai vir correndo para cá.
— Melhor eu tomar cuidado então, vai tomar meu posto. – Eu falei, brincando e os caras riram.
— Vai lotar de gente... muita gente, querendo tacar ovo e tomate em mim. – Eu gargalhei e o Mario parecia uma hiena de tanto que ria.
— Eu acho que já estão vindo na verdade, você não precisa nem cantar.
— Chega desse papo furado. Agora, vai rolar um super show ao vivo, e vocês ai de casa vão poder conferir, exclusivo. – Foi anunciando o Paulo.
— Vai rolar fãs gritando, Paulo? – Perguntou o Mario.
— Vai ter algumas fãs aí, assistindo, mas espero que aquelas loucas não me deixem surdo. – Eu ri.
— Elas vão se comportar. – Eu disse, em defesa das minhas fãs. – Vão cantar comigo.
— Vão cantar? Aquelas lá de fora não parecem afim de cantar não. Olha a gritaria da porra. – Eu gargalhei e me levantei em seguida. Eles haviam feito uma espécie de palquinho na sala ao lado com um banquinho e o meu violão, já prontos, todos ligados para que o pessoal de casa pudesse ouvir na rádio, um microfone na frente do banco e algumas fãs já estavam sentadas em cadeiras a frente, obviamente, rindo daquela palhaçada toda. Algumas fãs, ali, haviam ganhado a promoção da rádio, outras eram de fã-clubes, e algumas eu já até conhecia de tanto que iam em todo lugar onde eu estava.
— Vamo cantar?
— Simbora? – Eu segui até a salinha e as meninas que estavam sentadas deram alguns gritinhos, o que fez o Paulo colocar as mãos nos ouvidos, abafando o som, fazendo todo mundo rir.
— Alá, já começou a gritaria. Se gritarem, ele não vai cantar, entenderam? – Todo mundo riu e eu me ajeitei no banquinho, pegando o meu violão, um assistente me ajudava a arrumar o microfone e o violão, eu sorri e acenei a algumas meninas ali, algumas filmavam, algumas tiraram fotos, algumas choravam, essas com certeza eram as ganhadoras da promoção.
Eu ajeitei o boné na cabeça, peguei os óculos escuros que estava pendurado na minha camisa e o coloquei, fazendo um charminho e as meninas animadas gritaram “huummmm”, e ora ou outra um “lindo”, “gostoso”. Eu ri, e me preparei para cantar.
— Quem souber canta comigo. – E então comecei a tocar o violão e a cantar um dos meus sucessos do momento, acompanhado de perto pelas meninas que sabiam tudo de cor e salteado, é claro.
Foram cinco músicas seguidas, com as meninas cantando e os ouvintes, com certeza, gostando, e então me fizeram sinal para parar, enquanto o Paulo e o Mario agradeciam minha presença e anunciavam o intervalo na rádio, eu colocava o violão de lado e me levantava, já me preparando para atender as fãs que começavam a se levantar, loucas para me agarrar.
Me aproximei das meninas e comecei a conversar com elas, tirando fotos, dando autógrafos, uma assistente da rádio veio nos ajudar, tirando a foto, dos celulares das meninas, para elas, e eu fiquei lá um tempo, tirando muitas fotos, dando autógrafos, conversando com elas, agradecendo o carinho, recebendo presentes. Não tinha como não gostar daquilo, o carinho delas era como uma onda de amor que me envolvia, uma energia que me elevava, eu esquecia tudo quando estava ali, recebendo o carinho e o amor delas, eu amava minha profissão profundamente, e mesmo sendo restrito a algumas coisas, quando eu estava ali, no meio delas, recebendo todo aquele carinho, eu via que tudo valia a pena.
Foi anunciado por outra assistente que o tempo das fãs comigo havia acabado e elas foram conduzidas para outra sala, eu continuei ali, conversando com os caras da rádio mais um tempo, vendo a Joana, finalmente, mais ao longe, me esperando, e então voltei ao programa para agradecer o pessoal, os ouvintes, o carinho de todo mundo e dizer que estava ansioso já para voltar, aproveitando e deixando as datas dos meus próximos shows, então anunciaram mais uma vez o intervalo e eu saí conversando com os caras em direção ao corredor que ficava do lado de fora da cabine onde faziam o programa.
O Paulo pegou meu boné e colocou na cabeça, zoando, eles eram assim, dentro ou fora do programa.
— Vou descer e fingir que sou você, será que cola? – O Mario gargalhou e puxou o boné da cabeça dele.
— Com essa cara feia aí não vai enganar ninguém. Daí que vão tacar ovo mesmo. – Eu ri e peguei o boné de volta, colocando ele por cima da cabeça, de modo que só ficava mais em cima dos cabelos.
O corredor era longo e dava em algumas salas de vidros, com dois corredores laterais para os dois lados no final, onde havia o elevador, eu estava ali, entretido com os caras que mal percebi quando uns cabelos louros parou em frente ao elevador, eu estava muito concentrado rindo da piada que o Mario acabara de fazer que levei alguns segundos para olhar para o elevador e ver que uma garota me olhava de longe, me apontando, achei normal aquilo, considerando quem eu era, mas o que me chamou a atenção na verdade não foi a garota me apontando, foi a outra que estava ao lado dela, ela tinha os cabelos louros, tão louros que eram quase brancos, e olhava para mim com os olhos arregalados, os olhos azuis, aqueles mesmos olhos que eu havia visto na tela do celular; na mesmo hora em que a vi abri o meu maior sorriso sacana e enfiei a mão no bolso, puxando o aparelho celular dela e o erguendo no ar, acenando o celular no ar, mal percebendo que os caras se viravam para ver para quem eu acenava.
Os olhos dela ficaram ainda maiores, se é que isso era possível, e ela abriu a boca, assustada por me ver ali, naquele momento, as portas do elevador se fecharam, e ela sumiu.



Sabe aqueles dias em que você pensa que nem devia ter saído da cama? Aquele era o meu dia de não ter saído da cama, foi o maior erro da minha vida, se eu pudesse voltar no tempo, eu ligaria para a Julia, da cama ainda, e diria que estava acometida de uma doença contagiosa e não poderia, de maneira nenhuma, sair de casa naquele dia, e se poderíamos marcar a entrevista para outro dia, teria sido a melhor coisa que eu faria em toda minha vida.
Quando eu cheguei em frente a porta da sala que a moça me indicara, vi claramente as palavras “Ricardo Martins”, na porta, então eu não estava no lugar errado, certo?
Errado. Eu estava errada e no lugar errado, aquela não era a sala do Sr. Martins, não o Sr. Martins que eu tinha que falar.
Enquanto eu não sabia disso, eu entrava e me sentava a frente de um rapaz alto, de cabelos negros e penteados de lado, num terno e gravata impecável, que me olhava de trás de uma mesa, muito educado e gentil, me olhando de baixo acima.
— É um prazer conhece-lo, Sr. Martins. – Eu disse, toda educada claro, com o book curricular no meu colo; eu já tinha guardado o bilhetinho com o número da minha salvadora na minha bolsa.
— Pode me chamar de Ricardo, por favor. – Eu sorri, incapaz de dizer algo a isso e ele sorriu de volta.
— Então senhorita, me falaram muito bem de você para essa vaga. – Eu sorri, cheia de mim, conhecendo bem a Julia, ela devia ter enchido linguiça até, bem provável até que me inventasse qualidades que nem eu mesma sabia que tinha. – Mas vamos começar falando sobre sua experiência.
Eu assenti e me sentei mais ereta na cadeira, ele viu que eu estava com o book no colo e estendeu uma das mãos.
— Posso? Eu tenho um currículo seu aqui, mas gostaria de dar uma olhada no que você trouxe. – Eu sorri e estendi o book a frente, era simples, tinha uma capa acinzentada, em papel duro, ao abri-lo, via-se o meu currículo muito bem elaborado, com as minhas qualificações, a faculdade, os cursos que eu tinha feito, diversos, eu vivia fazendo cursos de aprimoramento, enfim, era uma enchessão de linguiça, mas de uma maneira mais bonita. Ele não abriu de imediato, colocou a frente dele e estava olhando o currículo em papel que tinha nas mãos, eu não lembrava de ter dado meu currículo normal para a Julia, mas talvez tivesse feito isso em algum momento.
— Pode começar me dizendo sobre você, por favor. – Ele disse, enquanto lia meu currículo, meio distraído. Eu não gostava de falar quando as pessoas estavam distraídas, mas comecei mesmo assim.
— Bom, eu me formei no início do ano em relações públicas e comunicação social, ao mesmo tempo, também me formei em jornalismo, cursei as duas em períodos diferentes e consegui concluí-las na mesma época; fiz estágio em uma empresa americana por seis meses no ano passado, foi muito bacana, aprendi muita coisa legal e voltei com bastante experiência a mais que a faculdade ainda não tinha me proporcionado...
— É mesmo? – Ele me interrompeu e eu o olhei, sorrindo, sem jeito, ele ergueu os olhos do currículo e me olhou, franzindo a testa. – Desculpe, mas não encontrei isso no seu currículo.
— Hãn... – Eu disse, meio sem saber o que dizer, eu nem lembrava que currículo eu dera a Julia, mas não devia ser nada muito diferente do que eu tinha no book, a não ser que fosse um currículo antigo. – Desculpe, mas talvez a Julia tenha dado um currículo desatualizado, mas no book curricular o senhor poderá ver tudo isso, está perfeitamente atualizado.
Eu sorri, meio sem jeito e educada ao mesmo tempo, sentindo meu coração já acelerando no peito e minhas mãos soando frias, postas sobre a saia que eu nem sabia de quem era, tremendo de nervosismo por dentro. Ele abriu o book e começou a ler e suas feições foram ficando cada vez mais franzidas, mas que droga, o que tinha de errado.
— Estranho. – Ele começou a dizer e eu engoli uma pedra de gelo, o medo já descendo até meu estomago e pulsando mudo entre meu estomago e meus intestinos. – Está bem diferente desse que eu tenho aqui.
Ele ergueu os olhos, me olhou e então voltou para o currículo de papel.
— Você é uma secretária, certo? – O que? Ergui as sobrancelhas e o encarei, agora totalmente estupefata. Ai meu deus, não me diga que a vaga era para secretária e a Julia nem me falara nada.
— Secretária? Na verdade, Senhor, eu não... – Comecei a dizer, mas ele fez um sinal com as mãos pedindo para eu parar.
— Não, não, tem algo errado mesmo, os nomes não... – Ele começou falando, olhando o currículo e meu book curricular, comparando os dois. – O seu nome é Beatriz Junqueira...?
— Não, não. – Eu me apressei. – Meu nome é Melissa, Melissa Surya Elliot, meu nome é mesmo meio diferente, mas não é Beatriz, não Senhor. – Eu dei um sorrisinho, sem graça e ele pegou o book, olhando-o e então ergueu os olhos, me olhando, sorrindo, sem graça.
— O seu currículo é excelente mesmo, mas acho que não tenho uma vaga para você nesse momento. – Eu me senti afundando, aquela vaca daquela Julia tinha me dado certeza que a vaga era para mim, que era para auxiliar de relações públicas, não de secretária, eu ia matar ela.
— Me desculpe, Senhor, me ligaram marcando a entrevista, e eu jurava que era para auxiliar de relações públicas, mas deve ter sido mesmo um engano...
— Auxiliar de relações públicas? – Ela agora parecia estar entendendo alguma coisa que eu não estava. – Ah, Deus, é claro, sim, estamos mesmo com essa vaga, nossa!
Eu fiquei olhando para ele, sem entender, ele se confundira com a vaga ou o que?
Ele riu do mal-entendido e eu sorri, sem entender.
— Me desculpe, poxa, devem ter confundido, quem ia entrevistar para essa vaga era o meu pai, que se chama Sr. Martins, mas Roberto Martins. – Putaquepariu.
— Ahhh... – Eu disse, antes que falasse um palavrão, o que faltou pouco. Que merda de dia, eu devia me jogar do alto daquele prédio de uma vez.
— Poxa vida, te confundiram. – Eu queria chorar, eu estava quase chorando na frente daquele homem.
— Ele deve ter pensado que eu não vim na entrevista. – Eu disse, esmorecendo por dentro. Ele fez uma cara de “putz, com certeza, e ele é um velho chato e já era sua vaga”. Afundei mais ainda na cadeira onde eu estava sentada.
— Vamos fazer o seguinte, ele tinha uma reunião agora a tarde, então provavelmente não consiga te atender mais, mas eu vou contar a ele o mal-entendido e te ligamos para remarcar a entrevista, tudo bem? – Eu sorri com ar de “fazer o que, né”, e tentei parecer educada.
— É claro, sim, é claro, sem problemas. – Eu fui me levantando e ele estendeu o book a frente, me entregando, eu o peguei e guardei dentro da bolsa pensando em sair correndo o mais rápido possível e voltar para minha casa me trancar lá dentro, deitar na cama e dormir até aquele maldito dia acabar, antes que alguma outra desgraça acontecesse, mas do jeito que eu estava com a zica, não a doença, mas sim a zica do azar mesmo, era capaz de um trem me atropelar no caminho e um raio cair três vezes na minha cabeça antes que eu chegasse em casa.
Ou pior, acabasse sem roupa nenhuma no meio da rua.
Ele saiu de trás da mesa e me acompanhou até a porta, apertando minha mão e se desculpando pelo mal-entendido, eu sorri, agradecendo e voltei pelo corredor, me sentindo com vontade de afundar a cara num buraco bem fundo e bem profundo.
Se a Julia tivesse me dito que tinham dois senhores Martins naquele lugar, talvez eu tivesse percebido o equívoco antes mesmo de cometê-lo. Aproveitei que eu estava ali e decidi ir ver ela e contar o desastre do meu dia, eu precisava de alguém para chorar comigo, e pelo horário, ela já estava quase saindo, talvez pudéssemos passar num bar e eu encher a cara até esquecer quem eu era, essa era a minha maior vontade, antes de dormir até o dia acabar.
Perguntei a uma mocinha que passava pelo corredor onde a Julia Moraes trabalhava ali e ela me indicou que ficava no sexto andar, entrei, então, no elevador e segui até lá, quando a porta do elevador se abriu eu vi que estava tendo uma movimentação ali, olhei, distraída e vi umas meninas, um cara tocando violão, mas não me atentei, ali era uma rádio, ali provavelmente era onde eles gravavam os programas, ou uma das salas em que gravavam, eu segui a esquerda e entrei em outro corredor, seguindo até o final como a mocinha havia me dito e me certifiquei de que o nome Julia Moraes na porta fosse mesmo da louca da minha amiga, bati na porta e esperei.
Quando a porta se abriu, ouvi o grito antes mesmo do abraço.
— Mellll! – Ela me abraçou forte e eu me senti sufocada. – E ai, já acabou?
Nem começou, eu quase disse.
Ela me puxou para dentro da sala dela e fechou a porta. Eu me sentei na cadeira e me deixei afundar. Ela tinha uma mesa só para ela e sentou do outro lado, me olhando, e então franziu a testa.
— Amiga, o que foi? O que aconteceu? Você foi mal na entrevista? – Eu queria chorar, juro que eu queria desabar, mas não fiz isso, ao contrário, comecei a contar tudo para ela, sobre o cara idiota que me atropelara, a calça rasgada, o celular perdido, depois o celular encontrado com ele, a moça que me ajudara, depois o erro na sala do Senhor Martins errado e ela ficou me olhando com os olhos arregalados, provavelmente pensando, como tudo isso acontecia com uma pessoa só num só dia?
Pois é, eu queria muito saber.
— Meu pai amado, amiga! Você precisa se benzer urgente. – Eu ri e ela riu junto.
— Eu preciso é de uma garrafa de tequila inteirinha e sozinha. – Ela riu alto e eu ri junto da minha própria desgraça.
Fazer o que?
— Está quase na hora de eu ir embora, quem sabe podemos passar num barzinho e começar cedo hoje? – Ela riu e eu assenti, freneticamente, já me levantando.
— Só se for agora, eu preciso mesmo encher a cara e esquecer desse dia, definitivamente esquecer. – Ela riu e se levantou.
— Vamos indo, faltam dez minutos, mas ninguém vai se importar se eu sair mais cedo, sempre fico até tarde mesmo.
Ela pegou a bolsa e saímos pela porta, eu ouvi conversas, risadas, e seguimos pelo corredor, conversando.
— Mas e agora, como você vai fazer sem celular?
— Ah, aquele idiota disse que ia me devolver, eu espero mesmo que devolva, ou eu acho ele nem que seja no inferno. – Ela riu alto.
— Tenho dó dele, ele não sabe com quem mexeu.
— Ju, você tinha que ver o tipinho do cara, o maior playboyzinho idiota, com aqueles bonés que nem ficam na cabeça direito, sabe, de ladinho como se fosse o Sérgio Malandro. – Eu bufei, com raiva só de pensar no cara que acabara com meu dia, tudo aquilo era culpa dele, se ele não tivesse me atropelado, minha calça não tinha rasgado, eu não tinha perdido a hora e nem falado com o Martins errado porque a recepcionista me mandaria para o cara certo, como um pequeno incidente podia mudar tudo uma vida e acontecimentos daquele jeito?
Chegamos próximas ao elevador, e a Julia estava falando, mas eu nem prestei muita atenção nela, perdida em meus pensamentos.
— ... eu te empresto o celular, mas só não vale ligar bêbada, ou melhor, vale sim, vamos nós duas ligar bêbada para esse babaca e acabar com a raça dele. – Eu ri com o resto do que ela estava dizendo e concordei com a cabeça.
Paramos em frente ao elevador e ela apertou o botão, e ficamos ali esperando. Eu ouvi uma movimentação atrás e me lembrei da salinha cheia de meninas e um cara cantando e me virei para olhar, vi que a salinha de vidro agora estava vazia e do lado de fora tinham algumas pessoas conversando e rindo, fiquei olhando, distraída, percebi que o elevador havia parado no nosso andar e aberto a porta por causa do barulhinho indicando, me virei e entrei no elevador, parando de frente para o corredor, quando de repente algo me chamou a atenção.
Senti meu coração dar um pulo no peito.
Meu deus, não pode ser.
— É ele! – Eu disse, tão inesperadamente que nem eu mesma esperava falar em voz alta, a Julia se virou e me encarou.
— Que amiga?
— É ele, o idiota que me atropelou. – Eu fiquei parada, estática, olhando para o cara, vendo ele rindo e conversando com alguns caras mais à frente no corredor, eu não conseguia ouvir o que eles diziam, mas ouvia as risadas altas. Ele estava parando, rindo e conversando, do mesmo jeito de antes, o boné mal colocado na cabeça, os óculos escuros, nem tinha sol ali e o cara estava de óculos escuro, era um idiota, babaca mesmo, senti um ímpeto de ir até lá e dar um murro na cara dele, pegar meu celular e ir embora, mas estava muito em choque para fazer qualquer coisa.
— Quem? Quem te atropelou? O Paulo? – A Julia foi perguntando e eu nem desviei os olhos para olhá-la, eu não sabia quem era Paulo, eu nem sabia quem era o idiota, eu só sabia que era ele, reconheceria aquela cara idiota em qualquer lugar, aquele bonezinho ridículo.
— Aquele babaca com o bonezinho de lado, eu te disse, de bonezinho e óculos escuro, é ele!
— Aquele ali? – Percebi que ela estava apontando, no mesmo instante em que ela apontou, acho que ele percebeu que o apontavam e olhou para ela, no segundo seguinte os olhos dele encontraram com os meus, senti meu estomago afundando. Era ele, definitivamente era ele.
— Amiga você tem certeza que é ele que te atropelou? – Ela perguntou e eu não consegui responder, vi ele sorrir sacana e enfiar a mão no bolso.
— Tenho Julia, é ele, é ele! – Eu vi ele tirar a mão do bolso, segurando alguma coisa e erguer no alto, acenando para mim com uma coisa preta nas mãos.
Era o meu celular.
— Amiga, não pode ser ele. – Eu mal prestava atenção na Julia, só me ocorreu uma coisa em meio ao choque de vê-lo ali, ele estava com meu celular.
Meu celular, eu precisava ir lá pegar!
Quando pensei em dar um passo para a frente e ir até lá, o elevador se fechou.
Dei um passo rápido, tentando impedi-lo de fechar, mas já era tarde demais.
— Ele está com meu celular! – Eu bati a mão na porta do elevador, com raiva e a Julia parecia estupefata atrás.  – Que droga!
Me virei e a encarei, vendo ela meio petrificada.
— Vamos voltar, eu preciso pegar meu celular, aquele idiota não vai levar meu celular embora.
Ela colocou a mão no meu ombro e eu a olhei, respirando profundamente.
— Amiga, você sabe quem é aquele cara?
— Hãn? – Olhei para ela e franzi o cenho. Como assim quem ele era? Era só o idiota que me atropelara e acabara com meu dia. – Aquele é o idiota que acabou com meu dia!
Ela suspirou e depois sorriu.
— Aquele “idiota”... é o Luan Santana.

  





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